quarta-feira, 18 de agosto de 2021

 


BREVÍSSIMA NOTÍCIA SOBRE A HISTÓRIA DO LICEU E SOBRE O ENSINO FEMININO NA PÓVOA

O Liceu da Póvoa de Varzim, hoje Escola Secundária de Eça de Queirós, foi criado ainda sob a Monarquia, em 1904. Para o efeito, concorreram muitos poveiros, mas foi determinante a colaboração do político vila-condense Conselheiro Abel de Andrade. 

 

Telegrama enviado à edilidade poveira pelo diretor-geral da Instrução Pública, Conselheiro  Abel de Andrade, a anunciar a criação do Liceu, segundo o Estrela Povoense de 24 de Julho de 1904.



Durante muitos anos, a instituição não teve edifício próprio, o que só veio a conseguir em 1952, sob o Estado Novo, que nesse ano inaugurou o magnífico edifício em que a escola está hoje instalada.

O Liceu foi inicialmente frequentado só por rapazes, mas desde longa data as Doroteias criaram e dirigiram na Póvoa um colégio para meninas. Este colégio foi roubado pela República, com a colaboração do fanático republicano e administrador poveiro António dos Santos Graça. Curioso que mais tarde o próprio Afonso Costa tenha dado a paga simbólica de cinco contos e setecentos pelo edifício. Em finais da década de 1920, as mesmas Doroteias construíram novo colégio.

 

Este edifício, construção do Estado Novo, foi inaugurado em 1952, contando no acto da inauguração com a presença de António Ferro, o homem que premiou a Mensagem de Fernando Pessoa e que tinha sido o editor de Orpheu, a revista do Modernismo.


Leonor Lima Torres conta a história do Liceu no seu livro Liceu da Póvoa de Varzim.

Está a ser criado um segundo blogue como complemento deste.




PROFESSORES DO LICEU (1)

Ao longo dos mais de 100 anos da sua história, passaram pelo Liceu professores que se tornaram notáveis por qualquer razão. Foi o caso do Pe. Afonso Soares, de Sebastião Tomás dos Santos, Leonardo Coimbra, Hernâni Cidade, Salgado Júnior, Vasques Calafate, José Luís Ferreira, Paulo de Cantos, Mário Fiúza, Pe. Franquelim Neiva Soares, Pe. João Marques, Luís Amaro de Oliveira, Flávio Gonçalves, Énio Ramalho, Mons. Manuel Amorim, o falecido bispo de Vila Real, D. Joaquim Gonçalves, e muitos outros. Vamos dar aqui notícia de alguns.


1 - Padre Afonso Soares 

Por altura da morte do Pe. Afonso Soares, Manuel Silva lembrou-o na revista “Póvoa de Varzim”, n.º 4, 4.º ano, 1914 (segunda quinzena de Dezembro). Como se vai ver, foi uma pena, um grave erro ter sido tão desconsiderada recentemente a notável figura do Pe. Afonso Soares. Quando se reparará a memória do seu notável nome que o sábio poveiro aqui exalta?

 

“É para impressionar, dolorosa e profundamente, o passamento brusco dum companheiro das mais despreocupadas e risonhas quadras do passado! Há um não sei quê de nós próprios que desaparece também como que arrastado num turbilhão que passa desolador e implacável!

A morte do Padre Afonso – desse vulto tão popular – meão de corpo mas elevado de espírito – ocorrida num fim de tarde tempestuoso e arrepiante, desconsoladora e depressiva, marcou uma acontecimento cheio de tristeza nesta boa, nesta bela terra a que nós tanto e tanto queremos.

Como sucede sempre que um conhecido baqueia na arena desta cruciante luta que é a Vida, o Padre Afonso, apenas arrefecido, foi relembrado, entre saudades e preitos de justiça, nos traços principais e bem francamente lançados da sua existência; e então ressaltou, em luminosa nitidez, a figura do patriota às direitas, trabalhador estrénuo e desinteressado.

Sim. Pelejador da boa causa, o Padre Afonso, que nos bancos escolares se afirmara inteligência robusta e culta e, nos cargos eclesiásticos, o homem que é do seu tempo, veio para a cátedra professoral e para a banca do jornalismo espargelar os primores dos seus conhecimentos e o melhor da sua alma intensamente devotada ao bem e ao progresso da sua terra.

Luta tenaz e persistente teve-a sempre para erguer o Instituto Municipal, onde já leccionara, a Liceu Nacional. A este grave e alto problema local – alfim solucionado – dedicou esforços que outros para logo poriam de parte! Um pouco mais de comodismo e de calculada indiferença da parte do Padre Afonso e tudo teria soçobrado no “deixar ir” tão português, tanto dos nossos hábitos.

Nos periódicos locais, onde colaborou com ciência e consciência, deixara, por anos, os traços indeléveis do polemista experimentado e indefeso, do jornalista bem conhecedor do ofício e, por isso, esclarecido, correcto, leal. Os seus escritos elevaram o jornalismo poveiro a foros de rara competência no meio provinciano.

Foi como a quadra mais brilhante em que junto dele se agruparam penas que chegaram a defrontar-se com as melhores dos jornais portugueses, esse temo em que o Padre Afonso dirigiu, infatigável e proficientemente, a “Estrela Povoense”, onde foram versados os mais interessantes e capitais questões para esta Póvoa: - a pesca de arrasto, a higiene e melhoramentos locais, a propaganda da praia, a renovação política que fez irmanar partidos e congraçar adversários, tudo para a transformação da Póvoa, sempre benéfica, sempre útil.

Bons tempos, esses!

Revendo, com dolorosa exactidão e lancinante memória, toda essa extinta campanha pelo torrão pátrio, todo esse bom combate, em que o peso da tarefa se anulava pelo êxito da acção. Essa bela figura do Padre Afonso, agora esbatida, imaterializada, distende-se, duplica-se, agiganta-se, cobre como uma sombra cariciosa o coração daqueles que o conheceram, que bem lhe quiseram, como ele bem queria a todos.

Morreu um grande, um autêntico povoense!”

 

A rua onde morava o nome do padre Afonso Soares

Pelo Prof. Fernando Souto

 

“Em Setembro de 2012 a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim aprovou, por unanimidade, a proposta de atribuição do nome de Manuel Lopes à então designada rua padre Afonso Soares.

Manifestei, em devido tempo, absoluta discordância com a referida decisão. Concordar com tal deliberação significava aceitar o saneamento e consequente apagamento público de um prestigiado jornalista, redator principal de a “Estrella Povoense”, primeiro diretor de “ O Comércio da Póvoa de Varzim”, político regenerador, vice-presidente da “Real Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários”, presidente da comissão encarregue de elaborar os primeiros Estatutos de “A Beneficente”, secretário da “Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia”, capelão da Igreja da Lapa, pároco da Matriz da Póvoa de Varzim e também um dos fundadores do Liceu, seu incansável professor e respeitado reitor.

Perante esta nova realidade e contrariamente ao que seria de esperar, não me apercebi de que alguma destas instituições tivesse levantado a sua voz em defesa da memória do padre Afonso Soares. Estranho silêncio, que a seu modo, também fala.

Não se pode esquecer que na “Representação” que a Câmara Municipal enviou a Sua Majestade o Rei D. Carlos, em Junho de 1904, a implorar a criação de um Liceu Nacional na Póvoa de Varzim, consta o nome do padre Afonso Soares como garantia segura para o sucesso do projecto.

O padre Afonso Soares conheceu e ultrapassou vicissitudes várias para organizar e instalar a nova instituição de ensino, motivadas pelo desfasamento entre as intenções políticas e a realidade económica do país e da autarquia local, cuja compreensão o levou a prescindir dos seus merecidos ordenados. Viveu num tempo, onde se evidenciaram as movimentações em defesa da manutenção do Liceu face às constantes e cíclicas ameaças de extinção. Sem este seu empenhamento cívico o Liceu jamais teria passado de um projeto, de uma intenção, ou, quando muito, de uma experiência de curta duração como aconteceu, à época, em diversas localidades do país. 

Ganha pois, mais sentido o testemunho do historiador Manuel Silva na revista “Póvoa de Varzim”, Dezembro de 1914, que cito:

“(…) luta tenaz e persistente teve-a para erguer o Instituto Municipal, onde já leccionava, a Liceu Nacional. A este grave e alto problema local dedicou esforços que outros logo poriam de parte! Um pouco mais de comodismo e de calculada indiferença da parte do Padre Afonso, e tudo teria sossobrado no “deixar ir” tão portuguez, tanto dos nossos hábitos”.

O ano de 1915, ano a seguir à morte do padre Afonso Soares, foi conturbado para o Liceu. Basta ter presente a nomeação, nesse ano, de três reitores, a agressão a um deles por parte dos alunos, a interdição e posterior levantamento da realização dos exames finais, a ameaça eminente de despejo do Colégio Povoense, que então ocupava, para ajuizar do que fora o seu génio e carisma: o homem certo no lugar certo.

Não tenho dúvidas de que foi o sentimento de reconhecimento e de gratidão a Manuel Lopes que moveu a Comissão Municipal de Toponímia a propor a alteração do nome da rua. Todavia, a materialização desse sentimento não pode diminuir ou apagar o nome de outra personalidade que, a seu modo e noutros contextos, apaixonadamente serviu a Póvoa de Varzim.

Poder-se-á invocar que, desta forma, aquela homenagem ganha um significado maior e evidente na ligação ao edifício da Biblioteca Municipal Rocha Peixoto, a que Manuel Lopes consagrou grande parte da sua vida. Mas por outro lado, importa aqui relevar que análogo propósito animou a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, na reunião de 19 de janeiro de 1966, ao atribuir o nome do padre Afonso Soares à rua confinante a nascente com o Liceu, instituição que de forma persistente ajudou a fundar. Não vislumbro pois razões para revogar, agora, tão acertada e justa deliberação.

A verdade é que a placa de mármore que ostentava o nome do antigo Reitor do Liceu da Póvoa de Varzim, padre Afonso Soares, foi retirada do muro de vedação da atual Escola Secundária Eça de Queirós, em finais do mês de novembro de 2012. Quero crer que num futuro próximo a verei reposta numa rua prometida. Mas, para mim, professor da Escola Secundária Eça de Queirós, não será a mesma coisa, como sói dizer-se.

Termino com a indicação de que a sua anterior morada está assinalada e fixada nas páginas da “Toponímia da Póvoa de Varzim” do Dr. Jorge Barbosa, insigne médico e historiador poveiro. A esse itinerário podemos regressar sempre, na companhia da memória e da história do Liceu da Póvoa de Varzim.


2 - Cónego Ricca

O Cónego Ricca, professor efectivo do 1.º grupo no Liceu, nomeado em 12-6-1908, foi eleito seu reitor em 21-10-1910 e tomou posse em 1-11-1910. Deixou de prestar serviço em 1-10-1912.

Um dia, o jornal O Intransigente colocou o Cónego Ricca como o terceiro republicano mais influente da Póvoa, após o Dr. José Pedro de Sousa Campos e António dos Santos Graça. E devia ser verdade.

Por duas vezes, que saibamos, o Cónego Ricca enviou a Afonso Costa telegramas de apoio às suas medidas discricionárias. O Poveiro denunciou publicamente a incongruência ao menos numa delas (na edição de 20 de Maio).

O nome deste insensato cónego da Sé de Lamego só consta aqui para documentar a desorientação que reinou na Póvoa – e que contagiou o Liceu – ao tempo da Primeira República.

Imagem – Edital de Cónego Alberto Ricca como reitor do Liceu.

 

terça-feira, 17 de agosto de 2021

 


PROFESSORES DO LICEU (2)


3 - O carbonário Sebastião Tomás dos Santos

O professor Sebastião Tomás dos Santos, a quem na Póvoa chamavam o Zefinha, nasceu em 15 de Setembro de 1872, no lugar de Laceiras, em Cabanas, Carregal do Sal. Teve um começo muito humilde, como pastor, mas, se numa das mãos lhe viam a vara do ofício, na outra segurava um livro. Um dia, com a quarta classe, partiu da sua terra à aventura, empregou-se no comércio em Santarém, e fez o curso liceal. Mais tarde, foi sargento de infantaria e habilitou-se para o ensino.

 

Na Póvoa de Varzim

Ensinou em Lisboa, no Liceu do Carmo, antes de vir para o da Póvoa, em 1908, para ensinar Matemática, como professor provisório, com 36 anos e sem dúvida já casado. Viveu no arrabalde sul da Póvoa, na “Vila de S. Brás”.

Em 27 de Fevereiro de 1911, tornou-se administrador do concelho, em substituição de José Pedro de Sousa Campos.

Ao menos durante parte do tempo da sua administração, acumulou, com o ensino, a responsabilidade do registo civil.

Tomás dos Santos devia integrar aquele grupo de intelectuais ditos liberais que o Mons. Manuel Amorim uma vez assinala, ligados ao Café Chinês e ao Centro Republicano. Aquando da proclamação da República na Póvoa de Varzim, dia 7 de Outubro de 1910, não faltou à chamada para apor a sua assinatura. Era então um homem novo, um lutador republicano, com preparação académica pouco comum.

Pelos vistos, Sebastião Tomás dos Santos era carbonário. Como veio para o Liceu da Póvoa no ano lectivo de 1908-1909, "obrigado a abandonar Lisboa como perigoso às instituições monárquicas", tal deve ter tido como causa próxima o Regicídio. Nomeado em 21 de Outubro, entrou em exercício em 29 de Outubro.

 

Habilitações

Estranhamente, Sebastião Tomás dos Santos teria coleccionado vários cursos, num tempo em que isso seria muito pouco comum e ainda mais num jovem que não tinha qualquer apoio familiar.

Apesar de, na Póvoa, ao menos uma vez, lhe terem chamado doutor, o único curso que lhe outorgava o título de doutor terá sido só o bacharelato em Filosofia, que concluiu posteriormente, em 1915-1916.

Também surpreende que os seus cursos se repartissem pelo campo das ciências e do das letras.

Em 1909-1910, no Liceu, distribuíram-lhe a leccionação destas disciplinas: Matemática, Ciências Naturais e Desenho, mas, pelos vistos, também Alemão.

A esposa deveria ser de família abastada uma vez que há razões para pensar que o casal gozava de boas condições económicas.

 


Edital que o administrador Sebastião Tomás dos Santos fez publicar na imprensa poveira.

 A tomada de posse como Administrador: o lobo vestiu-se de cordeiro

A tomada de posse de Sebastião Tomás dos Santos como administrador teve lugar em 27/2/1911; ele próprio o anunciou em telegrama ao Governador Civil: 

“Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Ex.cia que tomei hoje posse do cargo de Administrador deste concelho, para que fui nomeado por despacho do Ex.mo Ministro do Interior, de 23 do corrente”.

 Na altura proferiu este discurso:

“Cidadãos e amigos

Tomando posse da Administração deste concelho, devo confessar-vos que, ao contrário do que alguém possa supor, não me seduziram as honras do mando nem fui nunca alvejado pela vaidade do destaque.

Aceitei de boa vontade este cargo não pelo que ele tem de agradável, mas sim pelo que ele tem de espinhoso.

Humilde obreiro da República, pela República trabalhei sempre; e de tal modo defendi o meu ideal que como perigoso às instituições monárquicas, eu me vi obrigado a abandonar Lisboa.

Como humilde defensor da República me apresento hoje aqui.

Não duvideis nunca da sinceridade das minhas intenções, não duvideis nunca da minha vontade de acertar.

Por mais de uma vez fui perseguido pela monarquia, mas nem a República é um regímen de perseguição, nem eu tenho qualidades de perseguidor.

A República é um regímen de paz, de moralidade, de justiça, de progresso e de tolerância.

Mas não devem os mal-intencionados confundir a tolerância com a cobardia.

A República é um campo aberto a todas as actividades; todo o homem honesto, todo homem de passado limpo de entre vós deve com a parcela do seu esforço cooperar no engrandecimento desta terra, deve com a sua boa vontade cooperar na defesa da República.

É essa leal e dedicada cooperação de patriotas que eu espero de todos e agradeço a cada um.

Fostes algum dia monárquico?

Talvez.

Monárquico sincero, leal, honrado, sem dúvida.

Mas no dia em que a Monarquia se vos apresentou manchada pela corrupção, coberta de lama por latrocínios de milhares de contos, estigmatizada enfim pela degradação moral mais abjecta, perdestes a vossa fé monárquica, e a República pôde implantar-se sem um único protesto vosso.

Ora se não estais com a Monarquia estais com a República e esta muito espera de vós.

Entre vós nasceram Eça de Queirós e Rocha Peixoto, homens que não honram somente esta terra, mas todo o Portugal, honram a nossa pátria.

Entre vós nasceu o ilustre chefe local do partido republicano, Dr. João Pedro de Sousa Campos, cuja austeridade de carácter é de uma honestidade inconcussa, cuja envergadura moral e política honra não só esta vila, mas todo o Partido Republicano Português.

Copiai estes virtuosos exemplos de trabalho e de nobreza de carácter; educai vossos filhos na escola da moral e do dever e vê-los-eis, em breve, se o não fordes já, sinceros republicanos, sem haver dado por isso.

É que a República é a Moral, é a Ordem, é a Liberdade, é o Progresso.

Cidadãos! Meus Amigos!

Viva a República!” 

É um texto bem escrito e construtivo, de paz, ao menos na aparência. De facto, estas palavras tinham para ele um sentido que escapava a muitos dos seus ouvintes. O lobo tinha-se vestido de cordeiro.

 

O primeiro ataque de Tomás dos Santos, a reacção d'O Poveiro, a grande humilhação do administrador

Mas Tomás dos Santos não esperou muito para despir a pele de cordeiro e mostrar-se na sua face lupina. Debatia-se então sobre um documento dos bispos portugueses que deveria ser lido nas igrejas, ao que Afonso Costa opôs uma terminante proibição. O novo administrador toma, no caso, uma atitude bem capaz agradar aos seus mais radicais correligionários e certamente inspirada no estilo discriminatório do Ministro da Justiça. É ao mesmo Afonso Costa que no dia 5, “de manhã”, envia o seguinte telegrama:

“Ex.mo Ministro da Justiça

Lisboa

Ao tomar posse estava avisado prior Póvoa que não leu pastoral mas falando missa conventual disse ia consultar o arcebispo e se esse mandasse ler lia desse o que desse. Estão intimadas testemunhas terça-feira. Abades Amorim e Terroso leram parte pastoral antes avisados. Estes dois padres são conhecidos como reaccionários principalmente Amorim. Prior Póvoa maluco. Restantes sete freguesias não leram. Arcebispo primaz telegrafou ontem arcipreste Beiriz deste concelho aconselhando abades não ler pastoral nem referir-se a ela. Hoje cinco horas manhã saí percorrendo várias povoações mandando emissários às outras, nada anormal.

Administrador do Concelho.

Expedido em 5, de manhã”.

Grande fervor republicano o do novel administrador! Pelos vistos, os emissários mencionados por Tomás dos Santos eram autênticos espiões.

Este telegrama acabou por vir a público em dois jornais de circulação nacional, com a consequente difamação do visado. Imagina-se a surpresa e desagrado que isso terá provocado entre os católicos da Póvoa.

O Poveiro escandalizou-se com o telegrama do administrador; o "sensatíssimo discurso" que proferira ao tomar conta do cargo não fazia prever um insulto tão descarado:

“Parece-nos que Sua Ex.cia não foi feliz, o que deveras sentimos, em ferir uma nota tão forte, que tanto desagradou pela crueldade, que, mesmo que traduzisse uma verdade, era, porque tinha de o ser, desagradável e comburente para o infeliz. Sua Ex.cia perdoe-nos que lhe digamos com o maior respeito, mas também com a rudeza de marinheiro: os poveiros foram, são e hão-de ser generosos com os seus hóspedes, mas magoam-se quando esses não lhes sabem corresponder dignamente. [...]

Maluco! Que triste, e nós o sentimos deveras que assim o denomine um hóspede na nossa terra há dois anos, que certamente nunca se afastou do pároco desta vila, com quem se tem dado, sinal de que nunca receou qualquer manifestação que ele desse de alienado”.

O Arcipreste mencionado no telegrama era o culto e sereno padre poeta António Martins de Faria.

Uma curiosidade: na véspera do envio do telegrama, O Comércio, certamente a partir de informação saída no jornal republicano portuense Pátria, anunciara a suspensão d'O Poveiro. De facto, os acontecimentos que a seguir vão ter lugar acabarão por atingir uma clara ressonância nacional.

 

Grande humilhação para Tomás dos Santos!

No final daquele mês, em 29 de Março, o administrador há-de ter rejubilado por momentos quando telegrafou para o Governo Civil o seguinte:

“Fugiu Prior desta vila Manuel Martins Gonçalves da Silva, contra quem foi lavrado auto de investigação por incitamento povo a revolta. Povo republicano deste concelho representado nesta administração por uma grande comissão pede providências imediatas a fim de evitar conflitos”.

Enganara-se, e muito. O Prior da Póvoa não fugira: fora ao Porto falar com o Governador Civil e expor-lhe o seu caso.

De facto a luta vinha a aquecer, por várias razões, e recaía sobre o Prior uma ameaça real de detenção, já que ele não acatava pacatamente os desmandos da nascente República.

Ao Governador Civil terá proposto que, se o quisesse prender, o fizesse ali, no Porto, mas nunca na Póvoa. Mas foi tão convincente no esclarecimento das suas atitudes que trouxe de lá um salvo-conduto, com data de 30 de Março, que o isentava, ao menos em boa parte, da jurisdição do Administrador. Nele se lia:

“Enquanto por mim ou superiormente não for determinado o contrário, o Sr. Abade tem o direito de regressar à sua paróquia e exercer nela as suas funções, sem impedimento algum”.

Publicado n’O Poveiro em 8 de Abril, o documento há-de ter gelado as hostes republicanas.

 

O Comércio escandalizou-se

O Comércio fizera, uma semana antes (30 de Março), um ataque cruel ao Prior. Intitulava-se a coluna: “O Prior da Póvoa” e tinha como subtítulo “Basta! Basta!”; depois corria esta prosa indignada, despropositada, insultuosa e ameaçadora:

“Não podemos, como republicanos, como patriotas, permitir que o Prior da Póvoa continue impunemente a difamar a República, a fomentar ódios, a sublevar o povo crente e ignorante da nossa terra.

Basta! Basta!

É necessário providências enérgicas; é urgente que as autoridades da nossa terra ponham cobro a este estado de coisas que não pode continuar por mais tempo.

Todos os domingos, a pretexto de qualquer coisa que nada tem com o culto, o Prior da Póvoa bota fala ao povo, no propósito único de alarmar a agente crédula, dizendo mentiras e falsidades, com uma hipocrisia de que só ele é capaz.

No último domingo, então, o sermão tornou-se escandaloso, único.

Custa mesmo a crer que o arrojo de tal criatura chegasse a tanto!

Hipocritamente lacrimoso, com refinadíssima impostura, o Prior da Póvoa fartou-se de dizer sandices, de difamar a República.

E fê-lo com tal arte – pois o prior é um sublime actor – que conseguiu comover o auditório, composto em grande maioria da nossa pobre gente do mar que saiu do templo aterrorizada pelo que ouviu!

Não; isto não pode ser!

É necessário; é urgente que o Prior da Póvoa seja expulso para sossego de todos. E há-de sê-lo, estamos disso certo, a fim de evitar actos violentos em perspectiva e que são imprescindíveis quando as providências se demoram e não satisfazem os brios dos patriotas.

Fica dito o bastante para sermos compreendidos.

Basta!”

Na lógica destes escritos está que a tudo a que a tirânica República (onde havia coisa semelhante à face da Terra?) dissesse só havia que obedecer sem discussão. E repare-se que a catilinária não tem por si nenhuma afirmação concreta do Prior, muito menos nenhum facto claramente comprometedor. O Prior não atacava a República, mas não perdoava à maçonaria, que influenciava o governo e a que Santos Graça pertencia – e escandalosamente promovia.

Como há-de ter sido doloroso resistir meses a fio a tão continuada prepotência!

Em 20 de Abril, sai a Lei da Separação. Terrível que ela era! Mas não surpreendia de todo: os visados já se vinham habituando a semelhantes desmandos. Já se proibira levar o Viático aos doentes (ao menos como dantes), a “cruz alçada” e sacerdotes de sobrepeliz nos enterros, dificultara-se o toque dos sinos e havia uma comissão paroquial que atrapalhava a vida paroquial.

 

O sectarismo do administrador

N’O Poveiro de 27/5/1911, saiu um artigo não assinado, de que se copia a segunda parte. Tinha por título: “Sectarismo: o ateu Sebastião Tomás dos Santos”. Faziam-se nele afirmações claras e demolidoras para o administrador e combatiam-se as principais orientações da República anticlerical. No final, afirmava-se a certeza da vitória da Igreja. Ainda se gozava dalguma daquela liberdade de expressão, que a tirania maçónica e abjecta de António dos Santos Graça havia de eliminar.

“Anda sempre na berlinda o nosso herói Sebastião Tomás dos Santos. Sempre que se oferece ocasião para manifestar o seu sectarismo ou o seu ateísmo, ei-lo na vanguarda de todos os mais, impios e ateus.

Quando tem de cumprir os seus deveres de empregado público, desconhece a lei, com grave prejuízo do povo; mas se se trata de dar mais uma ordem ou lembrar algum artigo da lei que vá de encontro aos sentimentos religiosos do nosso povo, já não há esquecimento, ignorância ou afazer que lhe impeça a sua acção e actividade. É o sectarismo em toda a sua hediondez!  (…)

O conhecimento da lei só chega agora ao Sr. Tomás dos Santos para mais uma vez revelar ao povo crente da Póvoa o seu sectarismo, o seu ódio aos católicos e o seu desejo de seguir as pisadas do mação Afonso Costa, na perseguição à Igreja. Como leu em vários jornais que o mação Afonso Costa, na conferência de Braga, disse que desejava à Igreja uma boa e serena morte, sem sobressaltos, arrependida e contrita dos males que fez sofrer à Humanidade, ele, o pobre ateu, o sectário fiel, o acumulador-mor destas paragens, que, enquanto a teta der, podem dizer-lhe o que quiserem porque não se mexe; procura, sempre o que o ensejo o permite, perseguir os crentes e desprezar a Igreja. Pois saiba o mação Afonso Costa, o carbonário Tomás dos Santos, todos os ateus, ímpios e livres-pensadores, que a Igreja há dezanove séculos tem sido perseguida mas nunca vencida.

As medidas sectárias de um governo ateu podem fazer sofrer privações e desgostos a seus filhos, podem trazer dias de amargura e tristeza para a Igreja, mas ela sairá vitoriosa e triunfante.

Se o Sr. Tomás dos Santos, até aqui, sem motivo nem ocasião própria, se tem mostrado tão hostil aos católicos, quando chegar a ocasião de aplicar o decreto da Separação (aniquilação) da Igreja do Estado, como ele há-de revelar a toda a Póvoa o seu sectarismo, o seu ateísmo, o seu juramento à Carbonária?

Se a lei da Separação, disse Boto Machado, republicano e livre-pensador, numa conferência em Belém, Lisboa, parece obra de Satanás contra a omnipotência divina, Tomás dos Santos, como fiel amigo do Diabo, com que solicitude, alegria, raiva e furor não há-de proceder na aplicação da lei? Como ele há-de espezinhar os homens isentos e tementes a Deus?

Mas lembre-se, Sr. Tomás dos Santos, que os católicos poderão ser perseguidos, vilipendiados, desprezados, mas nunca cederão o seu direito, nunca serão traidores ao seu Deus, nunca renegarão a sua fé por um prato de lentilhas!

A Igreja poderá ser espezinhada, espoliada dos seus haveres, tiranizada, mas há-de vencer porque tem por ela a promessa divina. As palavras dos homens faltarão, mas a palavra de Deus nunca falta. Faça, pois, o que entender, satisfaça o seu ódio de ateu, cumpra o seu juramento de carbonário: os católicos, com os olhos em Deus e a fé no coração, hão-de vencer e a Igreja, com o auxílio divino, há-de triunfar. Desaparecerão da terra todos os mações, ímpios e ateus, mas a Igreja não desparecerá!!!”

 

O atentado contra a casa de Sebastião Tomás dos Santos

No dia 1 de Junho de 1911, da parte da tarde, Tomás dos Santos comunicou em telegrama ao Governador Civil:

“Casa Administrador alvejada esta noite com tiros e pedras, vidraças partidas, portas furadas. Rogo se digne enviar urgentíssimo dois polícias judiciários e oito civis. O Adm.dor Tomás dos Santos”.

A imprensa mais esquentada do republicanismo poveiro vai-se exaltar e apontar logo o dedo ao Prior e ao seu jornal. O IntransigenteA Propaganda e o próprio Comércio rivalizam entre si a ver quem é mais severo na condenação do facto, mas sempre com a esperança de atingir o pároco da Póvoa.

A edição de 4 de Junho d’A Propaganda, num artigo bem destacado, intitulado “Sicários e conspiradores”, gritava assim o seu escândalo:

“O que acaba de se passar na vila da Póvoa de Varzim é grave, gravíssimo, e a não serem tomadas providências, e rápidas, o caso é muito sério e teremos de optar por um de dois caminhos muito opostos: ou andar de bacamarte aperrado e atirar a matar sobre a quadrilha de conspiradores ou abandonar esta terra e fugir por falta de segurança.

Pela uma hora da noite de quarta para quinta-feira uma quadrilha de malfeitores-conspiradores assaltou a residência do Sr. Administrador deste concelho e, aos gritos subversivos contra as instituições, partiram-lhe três vidros das janelas, à pedrada, e despejaram cinco tiros de revólver, que foram assim empregados: uma bala furou uma telha do beiral, outra furou um vidro e a janela, outra bala cravou-se na parede e duas balas furaram a porta da rua. No portão do jardim colaram dois papéis, sendo um escrito a tinta vermelha onde, pouco mais ou menos, se lia o seguinte: se tentas saber quem foram os autores disto, o teu sangue correrá pelas ruas da Póvoa; já lavrou a tua sentença de morte o Comité Monárquico da Póvoa.

E assim puseram em sobressalto a família do representante do Ministério do Interior e assim desrespeitaram a primeira autoridade desta terra.

Isto é grave, gravíssimo, e é preciso saber-se, por força que não por jeito, quem é a escumalha de traidores que tão infamissimamente saiu à estacada na mais desaforada e ultrajante provocação.

É preciso saber-se quem foram os autores de tão nefando atentado; e, logo que apareçam, que sobre eles se descarregue o gládio da justiça, inexorável, para cortar cerce o mal que alastra, essa cáfila, talvez do conhecimento dos provocadores que semanalmente e no pasquim do Prior da Póvoa atacam por sistema, por malvadez, por espírito de seita negra, os caracteres impolutos, corações diamantinos, almas democratas de patriotas, amigos da República, amantes da Paz e do Progresso.

É preciso que a horda capitaneada pelo Prior da Póvoa seja chamada a contas, e mais é preciso que com o rótulo da República acabe o pasquim que o Prior da Póvoa pôs ao serviço de reaccionários, de monárquicos perigosos, de satânicos jesuítas que dizem tudo quanto maquinam, que bolsam todas as invectivas, que anavalham todas as reputações, numa peçonha de saramanganta, numa campanha de toupeira, numa ingratidão de jibóia entorpecida!

É preciso que se apurem os criminosos e se lhes dê o castigo devido, a eles a e aos cúmplices, que os deve haver.

Para trás, bando negro!

Para trás, inimigo da sociedade, Casério maldito, Revachol danado, Torquemada execrando, quem quer que sejas tu, sicário, alma patibular, desprezo dos homens!

Jogaram as últimas; é preciso que se exija unha por unha e dente por dente.

A escumalha da Póvoa, essa quadrilha de sicários e de selvagens que praticou o assalto tem mandante, tem guarda-costas, tem alguém interessado no abominável feito”

Neste escrito de ódio está o anticlericalismo em estado mais ou menos puro, um dos seus momentos poveiros mais ruidosos; está o manicómio republicano no que teve de mais abjecto. Fazem-se as acusações mais graves, atira-se a honra das pessoas para a lama. E, mais tarde, verifica-se que nada desta babugem tinha fundamento.

Casério e Revachol foram dois anarquistas guilhotinados na França em finais do século XIX. A quem propósito vinham aqui eles?

Torquemada foi um conhecido e terrível inquisidor espanhol. Que vem ele aqui fazer?

Os republicanos seriam por norma “caracteres impolutos, corações diamantinos” ou por excepção?

Que era “horda capitaneada pelo Prior da Póvoa”?

Os piores inimigos República eram os seus insensatos amigos.

Um dos papéis colados "no portão do jardim" exprimia-se deste modo:

“Esbirros!

Considera a manifestação d'esta noite, que foi por nós prepositadamente disposta para que não corresse o teu sangue, como um protesto e um aviso. Protesto contra as revoltantes prepotencias que a abominável republica de que és representante tem commettido sobre o povo d'este concelho. D'aviso para que durante os poucos dias em que ainda possas ser auctoridade não uses descer á pratica de violências que tornem impossível a conservação da tua vida e da dos teus. O Comité Monarchico Revolucionário do concelho da Povoa tomou todas as precauções para que ninguém possa descobrir os executores d'esta sentença. Não investigues que nada consegues. Ai! de ti se tentares vexar quem quer que seja!

Morra a Republica! Viva a Monarchia!” 

Como, por toda a evidência da investigação levada a cabo, o desacato não foi provocado por gente ligada a O Poveiro, a conclusão parece ser a de que foi gente republicana que queria incriminar o Prior ou, segundo Tomás dos Santos, “obra de alguém a quem interessava a sua saída da administração”. 

O documento foi muito bem planeado e aparenta ter sido escrito apenas com o objectivo de despistar os investigadores; e tê-lo-á conseguido plenamente. Repare-se que os criminosos estavam seguros de que ninguém os identificaria, isto é, tinham cobertura de gente influente. E os autores dos tiros não podiam ser inábeis populares poveiros, como se pensou erradamente. Ora a alternativa que ocorre é a de serem carbonários chamados do Porto para fazerem o serviço sujo e desaparecerem, estratagema que pelos visto era então bastante comum.

E isto pode apontar para António dos Santos Graça. Este crime tem grandes semelhanças com outro que foi cometido anos mais tarde contra a redacção do Liberal: o mesmo ataque nocturno, as mesmas armas de fogo e nenhuns rastos. E também dele saiu beneficiado o desprezível Amarelo.

Mas se o ataque da imprensa ao Prior foi brutal, irresponsável e perpassado de elaboradas flores de estilo oratório, a derrota vai ser proporcionalmente estrondosa.

O Poveiro começou por responder às acusações em tom comedido, mas, depois de passada a borrasca, usou um tom muito duro: homens da sua redacção tinham sido humilhados, estiveram presos e incomunicáveis cinco dias, por isso exigia-se agora uma desafronta.

O feitiço voltava-se contra o feiticeiro, contra Tomás dos Santos, contra a sua fúria lupina insensata, contra A Propaganda, contra O Comércio, contra O Intransigente. Por essa altura, emudeceram.

No fim do mês, porém, o cargo de Administrador passava para António dos Santos Graça, que se vai tornar responsável pelas maiores arbitrariedades republicanas na Póvoa e seu concelho. E não foram poucas: arrolamentos, exílio de párocos, silenciamento da imprensa da oposição, etc.

Como o Liceu ameaçava fechar por dificuldades económicas, o professor provisório Tomas dos Santos deve ter diligenciado a sua transferência para o Liceu de Rodrigues de Freitas, no Porto, onde de facto leccionou no ano lectivo de 1911-1912.

 

O fracasso de Tomás dos Santos

Politicamente, Sebastião Tomás dos Santos revelou-se um incompetente. Falhou quando chamou maluco ao Prior, quando anunciou que ele tinha fugido, falhou na sua cegueira sectária e sobretudo falhou na investigação ao ataque à sua casa.

Pensou que podia levar avante a sua ambição carbonária de destruir o catolicismo na Póvoa, mas deu só passos errados. Quis tudo de uma vez e ficou sem nada. O seu nome caiu na lama.

António dos Santos Graça, que era também discípulo subserviente de Afonso Costa, conseguiu aguentar-se como administrador muito mais tempo e enganar muita mais gente: deixou atrás de si feridas muito, muito mais graves.

 

Os “Vendilhões do templo” – discurso de Tomás dos Santos

No primeiro aniversário da República, Sebastião Tomás dos Santos discursou para os seus amigos radicais. Deu ao seu texto o título de “Vendilhões do Tempo”, sem nunca mostrar o que esse título tinha a ver com o que ia dizendo. O que pretendeu foi desforrar-se e desfechar um violento ataque ao clero. Chamou a Inquisição à baila e uns desmandos recentes de frades e freiras franceses. Para ele, isso representava toda a Igreja e a sua história e por isso proclamou a sua indignação contra ela. Escapava-lhe, por exemplo, que na Póvoa onde vivia não houvera nem havia nada de semelhante.

Aliás, os seus antepassados ideológicos, desde a Revolução Francesa à Comuna, desde o Marquês de Pombal aos Liberais, não muito distantes, tinham uma folha de serviço com páginas muito negras. Mas tudo isso ignora o antigo pastor de Carregal do Sal, o ex-sargento agora professor provisório e jacobino.

Há uma frase latina (timeo hominem unius libri) que se pode traduzir um pouco livremente por “tenho medo dum homem que só lê por um livro”. Era o caso do carbonário Sebastião Tomás dos Santos, que, lendo apenas pela cartilha jacobina, se mostrava destituído de todo o sentido crítico face às suas fontes.

 

Sebastião Tomás dos Santos no inquérito sobre o Complô Monárquico

Sebastião Tomás dos Santos só foi para o Liceu Rodrigues de Freitas já avançado o mês de Outubro de 1911. E ainda respondeu, no dia 20, ao inquérito sobre a eventual participação de gente da Póvoa no complô monárquico recentemente abortado no Porto.

A ala mais radical do republicanismo fora arredada da política e era agora administrador António dos Santos Graça; mas vão ser mesmo os radicais republicanos os depoentes do inquérito. As suas declarações têm dois alvos principais: o Prior, os seus colaboradores e o seu jornal, por um lado, e o novo administrador, por outro. As do Tomás dos Santos não são excepção.

Começa por afirmar que “tem a certeza moral de haver na Póvoa de Varzim elementos que surdamente e com tenacidade combatem a República; que esses elementos, à frente dos quais não podem deixar de estar o Prior, o Subdelegado de Saúde, médico Caetano d'Oliveira, Josué Trocado e sogro, farmacêutico Vieira e Padres Cascão e Amorim, contam com o apoio incondicional do clero e de quase toda a população do concelho, que sofre da terrível educação jesuítica”.

Esses elementos, continua, têm "por órgão o jornal O Poveiro onde de vez em quando se aconselha o povo à desobediência, mesmo à revolta, e em todos os números se acirra o ódio do povo aos republicanos mais em evidência”. “O mesmo jornal afirma o seu ódio à República achincalhando as suas leis e malquistando com o povo fanatizado os homens mais eminentes da Republica, tais como Afonso Costa”.

“Que a prova da existência do tal Comité Monárquico Revolucionário está no atentado feito à sua casa quando administrador do concelho, num aviso que os malfeitores deixaram afixado nessa mesma noite […]”

A partir, daqui o depoimento tem como alvo o administrador.

Ataca Santos Graça como oportunista, como pouco instruído, como dependente de todos. Um homem sem princípios, sem valor. De longe, sugere que pode ter sido ele o responsável pelo atentado de que tinha sido vítima.

Este e os outros documentos que comprometiam o administrador nunca estiveram no arquivo público, mas guardados em casa de António dos Santos Graça.

As afirmações mais curiosas de Tomás dos Santos são talvez as que dizem que os elementos que combatem a República “contam com o apoio incondicional do clero e de quase toda a população do concelho, que sofre da terrível educação jesuítica”. Tomadas à letra, significam que quase ninguém já queria a República, o que devia ser verdade - mas a culpa era dele, Tomás dos Santos, e de outros como ele.

A sua “certeza moral” sobre o Prior não passava dum desejo de carbonário.

 


Sebastião Tomás dos Santos concluiu o bacharelato em Filosofia com a modesta classificação de 12 valores.

No rasto de Sebastião Tomás dos Santos

Em 1 de Fevereiro de 1912, O Poveiro deu de novo notícias sobe Sebastião Tomás dos Santos: tinha sido bem recebido no liceu portuense de Rodrigues de Freitas e parece que não lhe faltava ambição. Copiam-se dois parágrafos:

“O ex-sargento Tomás dos Santos, o ex-administrador e ex-oficial do Registo Civil, aquele que, como administrador deste concelho, aceitou como sua mentora a ralé, a escumalha que habita nesta vila, essa que só é conhecida para fazer mal (sem nunca ter sabido fazer bem mesmo aos que lho fizeram) o inexorável (!) professor Tomás dos santos permitiu-se ao fim de três semanas de regência (!) – classificar com 2 a 8 valores mais de metade dos seus alunos, incluindo os da primeira classe!

O palerma pensa que assim se impõe no Porto, como pretendeu impor-se na Póvoa de Varzim?!”

No ano seguinte, Sebastião Tomás dos Santos foi para Coimbra, para o Liceu José Falcão, onde se manteve de 1912-1916. Lá fez o estágio e simultaneamente se bacharelou em Filosofia. Para quem tinha ambições de pensador, é estranho que tenha só conseguido a média de 12 valores.

De Coimbra, foi para Setúbal, onde leccionou de 1916 a 1918, como professor efectivo do liceu local. Teve lá nova experiência de administrador do concelho e novamente fugaz. Também não parece que lhe tenha corrido bem.

Os anos seguintes, até ao falecimento em 18 de Abril de 1952, passou-os em Lisboa, presumimos que como professor, até se reformar. Ignora-se como reagiu ao 28 de Maio e ao Estado Novo.

Nos anos finais da vida, parece que se deu a escrever para a imprensa e a preparar um livro sobre a multiplicação e divisão do cubo, que chamou “Os três problemas da Antiguidade”, mas que não terá publicado (estes três problemas da Antiguidade são a quadratura do círculo, a duplicação do cubo e a trissecção do ângulo).

PROFESSORES DO LICEU (3)


4 - Evocação de Leonardo Coimbra

Leonardo Coimbra foi um filósofo e político português das primeiras décadas do séc. XX. Viveu algum tempo na Póvoa e ensinou no Liceu, como está documentado no arquivo desta escola e na imprensa poveira.

Tinha nascido em Borba de Godim, na vila da Lixa, em 30 de Dezembro de 1883 e veio a falecer no Porto a 2 de Janeiro de 1936.

Escreveu alguém que pela profundidade e originalidade do seu pensamento, Leonardo Coimbra é considerado “como dos mais importantes, senão o mais importante entre os nossos pensadores do séc. XX”.

Ouçamos as palavras do prefácio escrito em Balasar, que se destinavam à edição portuguesa, saída em Lisboa, no Porto e no Rio de Janeiro, do importante livro de Platão intitulado Fédon; o pensador concluía assim o seu arrazoado: 

Ler Platão é cantar, sorrir, vogar em Beleza!

Que a nossa mocidade o leia, há-de sentir o peito alteado de orgulho, a fisionomia animada e forte, expressão dum íntimo movimento harmonioso e contente, que é o próprio bulício das asas da Alegria dentro do coração desperto.

Teorias de efebos, cantando o eterno triunfo da Aurora…

Quinta de Balasar, 1-9-18.

 Nestas frases nota-se o pendor poético da escrita do seu autor. Um pensador assim pode ir muito longe, como o aludido Platão, mas não brilhará propriamente como sistematizador.


Leonardo Coimbra.


Este filósofo, que se tinha afastado do catolicismo, regressou depois a ele. Veja-se como uma vez falou da última Ceia de Jesus:

 “Jesus é a Bondade. É, por isso, a dádiva pura e integral. Vai dar-se para dar a sua vida infinita às pobres almas dormentes. Mas antes, deseja ainda com um grande amor passar uma Páscoa com os seus. E, nessa Ceia, que Leonardo da Vinci encheu dum infinito azul dum Céu aberto, é todo enternecimento dadivoso para com as pobres almas, que, por momentos, irão tremer, vacilando às ventanias da Paixão.

Acabada a Ceia, tomando em seu peito, aberto em imensa chaga piedosa, todo o sofrimento humano, vai à herdade de Getsémani dar-se ao mais formidável Vendaval de Dor, que jamais acoitou um coração…”

 


O problema das geometrias não euclidianas no ensino secundário: lógica e pedagogia

No Anuário do Liceu Nacional da Póvoa de Varzim de 1912-13, saído em 1914, vem um texto de Leonardo Coimbra. Tem data de 1914, mas foi apresentado em 1912. Ei-lo: 

“A Geometria é, como se sabe, uma ciência posta, desde Eucli­des, em perfeito rigor demonstrativo. Os seus alicerces são os axio­mas e as definições, e toda a verdade geométrica, vai, de relação em relação, encontrar o seu fundamento nos princípios (definições e axiomas) fundamentais. Entre esses princípios colocou Euclides o célebre postulado das figuras semelhantes, paralela única a uma recta por um ponto exterior, valor de 180º da soma dos ângulos dum triângulo, encontro para o lado da soma menor das rectas que fazem com uma secante dois ângulos interiores ele soma menor que 180º [1] ou outro equivalente. Porque colocou Euclides este princípios fora dos axiomas e das definições?

Fora dos axiomas, porque ele não é axiomático, pois um fundo de indeterminismo reside na ideia de Espaço, suficiente para impe­dir uma integral exaustão da qualidade.

Fora das definições, porque o Espaço perfeitamente homogéneo e simples é implícito em todo o pensamento euclidiano, e tão pro­fundamente implicado que não é possível isolá-lo em definição. Já se deixa ver que é nossa opinião que o postulado de Euclides faça parte das definições iniciais. Assim é, embora, como posteriormente se verá, duma maneira filosoficamente bem diferente da maneira cor­rente entre os matemáticos filósofos.

O postulado de Euclides começou a ferir a sensibilidade dos matemáticos, que são para o Poeta o que a rocha é para o vegetal que a cobre - a ossatura da cósmica harmonia. Várias demonstrações se tentaram, mas o postulado era inabordável às tentativas do raciocínio por absurdo.

Assim devia ser, pois que, como demonstrámos numa das nossas obras[2], a validade do raciocínio por absurdo pertence apenas aos casos de determinismo completo, e o postulado de Euclides de­ve a sua existência ao fundo de indeterminismo do conceito inicial de Espaço.

Da derrota de tais tentativas saiu a ideia de que o desrespeito pelo postulado, não levando a absurdos, era compatível com os ou­tros princípios; daí as geometrias não-euclidianas.

Lobachevsky dirá que por um ponto exterior a urna recta, e no plano que as contém, se pode tirar uma infinidade ele rectas (parale­las), que não encontrem a primeira. Mais uma vez se revela que o problema está no indeterminismo inicial, gerando o indeterminismo das palavras recta plano. Se tudo tosse bem determinado, elas, sendo as mesmas, só poderiam significar o mesmo para Lobache­vsky e Euclides. Então haveria entre Euclides e Lobachevsky ver­dadeira contradição, e um deles seria em erro. Mas, se as mesmas palavras significam diversamente, é porque os caracteres escolhidos para as respectivas definições, sendo comuns e dando legitimamente a comunidade dos nomes, não são suficientemente diferenciais e específicos; tais nomes são somente nomes genéricos.

A Geometria de Lobachevsky mostra ainda que a soma dos três ângulos dum triângulo é mais pequena que dois rectos e que essa diferença é proporcional à área do triângulo, que não existem rectângulos, etc.....

A geometria esférica mostra que a soma dos três ângulos dum triângulo esférico é superior a dois rectos a diferença proporcional[3] à área do triângulo.

 


Podemos representar pela figura (ao lado) os três triângulos de Lobachevsky, Eucli­des e esférico, formados por linhas rectas de Lobachevsky (a), de Euclides (b) e li­nhas[4] rectas-esféricas (c), arcos de círculo máximo.

Mais claro se apresenta que tudo se re­sume no significado da palavra recta, em cada caso.

Na geometria euclidiana a recta é a linha determinada por dois pontos; nas outras geometrias, a recta é determinada por dois pontos depois de definida a superfície em que assenta.

recta esférica depende do raio da esfera, as rectas não eucli­dianas dependem todas dum parâmetro, que sempre vem a ser função dum comprimento, da linha recta euclidiana, em suma. De modo que a geometria euclidiana faz com as outras geometrias um grupo geral, diferenciado em cada caso pelo valor particular do parâmetro. Se tomamos o raio de curvatura para parâmetro, o parâmetro euclidiano é infinito, o que apenas exprime que o espaço euclidiano não tem curvatura. A ausência de curvatura é, pois, um carácter especial, que destaca singularmente o espaço euclidiano entre os ou­tros. Se agora conseguíssemos mostrar que todos os outros espaços postulam o espaço sem curvatura, não ficaria o espaço euclidiano como o primitivooriginal e indispensável?

Sendo assim, não poderíamos definir a recta euclidiana duma maneira exaustiva e completa e suprimir o postulado ele Eucli­des?

Podemos estudar a recta de cada espaço, idêntico a si mesmo, sem sair desse espaço e sem considerações estranhas a esse espaço, mas a transportabilidade do conjunto, bem difícil de iludir ou esquecer, carece dum meio sem curvatura, visto que não poderia ter simultaneamente as indefinidas curvaturas dos indefinidos espaços possíveis. E a própria uniformidade do parâmetro não é a recta euclidiana, que a garante? Como sabemos que o parâmetro é constan­te? Com que esperança buscamos tal parâmetro? Não será porque sob a possível curvatura está o determinismo da autêntica recta, de curvatura nula?

Como compreender que figuras iguais de espaços idênticos a si mesmos e entre si (esferas do mesmo raio) não possam coincidir? Se podem, o que é apenas a transportabilidade reaparecendo, eis necessário um espaço de curvatura, em suma, nula que as não de­forme: um espaço, que seja capaz dos corpos.

E não é lícito colarmo-nos num Espaço integral e para nós absoluto, de cuja transportabilidade nada poderemos supor, porque abrangendo o Espaço todas as relações de posição, nele ternos de as por e pensar. O espaço homogéneo e idêntico a si mesmo é, ain­da mais, penetrável pelas determinações dos espaços específicos. Nele a recta é bem determinada por dois pontos, sem precisar de terceiro ponto, pois este é dado no infinito em linguagem de geome­tria geral (género dos diferentes espaços especiais); e em linguagem euclidiana, porque a recta é a linha mais simples, sendo todas as outras definidas por ela e novas características. Deste modo o Espaço geral é um género matemático e como tal[5] rico dum determinismo superior às espécies.

Entre essas espécies existe uma, que é necessário momento dialéctico da construção do género; é a euclidiana. É pois logicamente necessária a primazia da recta euclidiana, embora uma exposição dogmática da geometria geral possa partir duma definição de recta[6], sucessivamente descriminada pelo parâmetro do seu espaço.

Por outro lado, também o espaço euclidiano, que a análise anterior nos revelou garantia de todos os outros, é o espaço exigido pelo movimento dialéctico das ideias científico-filosóficas.

Como conceber a vida, por exemplo, num espaço não euclidiano, onde as figuras se não podem minorar nem majorar? O diferente ta­manho de dois homens exclui a sua semelhança? Não levaria tal noção de espaço a um regresso da sistemática biológica aos seus ingénuos inícios?

Nas realidades geométricas pode a semelhança ser substituída por uma referência a superfícies determinadas por certas relações paramétricas. Ainda isto duplamente implica o espaço euclidiano para garantir o transporte e a fixidez da relação paramétrica.

Na vida, negação da semelhança, tanto escravizaria forma à matéria[7] que toda a adaptação seria impossibilitada e a vida morta em imóvel concreção.

Por consequência, e em resumo:

A recta euclidiana é implicada na construção da geometria geral; é igualmente implicada nos conceitos superiores das outras ciências. No ensino secundário ela entrará como definição funda­mental e isso determinará o parâmetro do espaço euclidiano.

A noção de parâmetro dará ideia da possibilidade duma geome­tria geral, sem retirar ao espaço euclidiano a sua insofismável primazia lógica.

Este ensino científico permitirá ao ensino filosófico liceal tirar, em reflexão sobre as ciências, as mais belas conclusões sobre a teo­ria do conhecimento e seu valor, como determinante da qualidade dos sistemas filosóficos.

Esta particular reflexão sobre as geometrias é insubstituível na fecunda tarefa de mostrar a inanidade de todo o empirismo e as dificuldades de todo o racionalismo que não seja dialéctico-sistémico.

Leonardo Coimbra

Póvoa, 1914.

 

O professor do Liceu Antero Marques Simões publicou em 2005 o livro O Deus e os Homens de Leonardo Coimbra.

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[1] Foi sob esta forma que Euclides o apresentou.

[2] O Criacionismo.

[3] Igual para a unidade de área-triângulo esférico tri-rectângulo.

[4] Mais curta distância entre dois pontos.

[5] Tal é a generalização matemática, progressiva e sintética: o número irracional abrange o racional no seu mais vasto e rico conteúdo, tec.

[6] Como mais curta distância entre dois pontos.

[7] Em boa linguagem aristotélica, a forma geométrica seria a matéria da forma biológica, etc…

 

PROFESSORES DO LICEU (4)


5 - O escritor José Luís Ferreira

O Prof. José Luís Ferreira ensinou no Liceu de Eça de Queirós entre 1919 e 1954. Comecei a ver referências a ele apenas quando estudei a biografia do seu amigo médico Abílio Garcia de Carvalho: estiveram juntos na fundação do escutismo poveiro e muito adiante na festa em que ao Dr. Abílio foram entregues as insígnias da Comenda de Cavaleiro da Ordem de S. Gregório Magno. Mas o relacionamento entre eles foi sem dúvida mais continuado: homens da mesma geração, uniam-nos muitos pontos de vista comuns. Quando em 1934 aquele médico profere no Liceu a Lição de Sapiência, na abertura do novo ano lectivo, certamente fê-lo a convite do Prof. José Luís Ferreira; de facto, hão-de ter estado lado a lado em muitas lutas.

 

Jota Efe corresponde a José Ferreira ou José Luís Ferreira, o professor de aqui se trata.

O Prof. José Luís Ferreira não era poveiro: era barcelense, de Cossourado (o Dr. Abílio Garcia de Carvalho era natural de Mouquim, Vila Nova de Famalicão); chegou à Póvoa sensivelmente no mesmo ano em que o seu amigo médico, que curiosamente vinha então de Barcelos. Não sei se participou na II Guerra Mundial, mas correu as sete partidas: fez o secundário em Viana e frequentou a Universidade em Lisboa; já como professor, antes chegar de à Póvoa, esteve nos Açores, em Chaves, em Beja, em Braga. No Liceu de Eça de Queirós, ensinou Latim, Francês, Português e talvez ainda Grego; durante vários anos, foi bibliotecário.

Até nós chegaram dois livros seus e dezenas de artigos que publicou em vários jornais (um deles foi o Diário do Minho, de Baga, outro o Idea Nova, da Póvoa; durante muitos anos escreveu para o jornal poveiro O 28 de Maio).

Basicamente, neste último jornal, desenvolveu duas rubricas, uma de Linguística e outra onde tratou o tema Folclore. Na primeiro saíram várias dezenas de artigos, na segundo apenas uns nove. Com base no trabalho desenvolvido na rubrica de Linguística, organizou depois o opúsculo que intitulou Ortografia Portuguesa Vulgarizada; de facto o título tem uma extensão quase barroca: «Ortografia Portuguesa Vulgarizada para Portugueses e brasileiros (Ortografia Oficial). Regras e exemplos práticos, com algumas explicações teóricas». São 48 densas páginas onde este professor de Português expõe com minúcia o tema que se propôs. Foi editado em 1929 pela Tipografia Povoense, como na altura aconteceu com muitos de diversos autores.

Mas, como já foi dito, o professor José Luís Ferreira publicou um segundo livro, com autoria atribuída ao pseudónimo Jota Efe, e intitulado Memórias de um Século. A segunda edição, a que conheço, saiu em 1965. Muito interessantes as memórias relativas ao tempo da República.

Este professor foi durante anos bibliotecário do Liceu. Vários dos livros que constituem hoje a Biblioteca Dr. Luís Amaro de Oliveira dever-se-ão aos seus cuidados.

Ouçamos algumas suas palavras do artigo 7 da rubrica Folclore, em que se refere à publicação do seu opúsculo de tema linguístico:

 (…) o pobre autor foi publicando artigos de doutrina filológica na secção Linguística, que reuniu num opúsculo que baptizou Ortografia Portuguesa Vulgarizada. Neste pequeno trabalho estão condensados os principais e fundamentais preceitos de ortografia (e também de recta pronúncia), do modo mais claro e acessível e simples que pode ser, e já se não poderá alegar ignorância de tal doutrina com o argumento de que não existia condensada em volume baratinho.

São apenas cinco regras de acentuação e três de pronúncia – o bastante para toda a gente poder escrever e falar razoavelmente o português. Mas, a par disto, há muita coisa “útil a quem aprende e até a quem ensina”. (Não pareça isto vaidade ou falta de modéstia, porque é a súmula do juízo feito por alguns Mestres dos mestres e por bastantes ilustres colegas dos vários liceus do país, que nos honraram com sua correspondência a tal respeito). 

Na sequência de dois artigos saídos Diário do Minho, um tal A.L. fez-lhe uns reparos na Voz da Póvoa. O Prof. José Luís Ferreira respondeu-lhe em três números seguidos do Idea Nova sob o título de «Gramática Parda», metendo a ridículo o saber do seu contendor. Por fim, veio a verificar que este era o seu amigo Pe. Alexandrino Letuga…

Como entretanto este sacerdote faleceu, o Prof. José Luís Ferreira alterou o seu título para «Gramática Morena» e rematou a polémica com mais dois artigos.

Ou porque as responsabilidades de pai de família o desaconselhassem ou por razões profissionais ou qualquer outro motivo, certo é que não se comprometeu muito directamente com a política; mas isso não o inibiu de escrever alguns artigos bem curiosos em que fundamenta as suas simpatias pelo Estado Novo.


6 - O singularíssimo Professor Paulo de Cantos

Uma das pessoas ilustres e curiosas que ensinou no Liceu de Eça de Queirós foi o Prof. Paulo de Cantos.
Nasceu ele em Lisboa (Ajuda) em 13 de Março de 1893 e aí faleceu em 9 de Abril de 1979.
O Dr. Jorge Barbosa escreveu que o Prof. Paulo dos Cantos frequentou as Universidades de Lisboa, Porto e Coimbra. “Dotado de grande inteligência, curiosidade e ânsia de saber e possuidor duma prodigiosa memória, fez vários cursos, concluindo licenciaturas em Matemáticas, Desenho, Físico-Químicas, Ciências Naturais e Biológicas, Línguas Românicas (Filologia Românica), segundo julgo, e ainda Cursos de Belas-Artes e até tirou, entre outros, um diploma em Vitivinicultura”.
“Foi depois professor do ensino liceal, começando pelo Pedro Nunes (Lisboa) e posteriormente leccionou no Liceu Eça de Queirós, no qual passou a maior parte da sua vida professoral, chegando a ser reitor cerca de 10 anos”.

Original e extravagante retrato de Luís de Camões pelo Dr. Paulo de Cantos.

Sobre a bibliografia do Prof. Paulo dos Cantos escreveu ainda o mesmo articulista:
É muito grande, complexa, original, singular e, porque não dizer, extravagante a bibliografia deixada pelo Dr. Paulo de Cantos.
Além do Dr. Jorge Barbosa, que dedicou ao Prof. Paulo dos Cantos dois extensos artigos n’A Voz da Póvoa em 16/9/93 e 14/10/93, também sobre este antigo reitor do Liceu escreveu Ney da Gama Simões Dias, no Boletim Cultural Póvoa de Varzim, vol. XXXIII, de 1996/1997. Aí aproxima a produção artística do Prof. Paulo de Cantos do movimento alemão do Bauhaus. Parece-nos contudo que uma aproximação ao surrealismo não seria descabida.
O Liceu possui alguns livros da autoria do Prof. Paulo de Cantos provenientes da biblioteca do Mons. Manuel Amorim.








Também original e extravagante esta capa dum livro do Prof. Paulo de Cantos. Os fundos-ouro em 10 línguas são a parte final das páginas onde de facto constam pensamentos em línguas muito diversas.



Devo o conhecimento desta notável figura ao meu amigo e colega Prof. Fernando Souto.



Mais imagens

Dado o interesse que actualmente está a merecer Paulo de Cantos, acrescentamos mais algumas imagens por ele criadas (para as ver melhor, clique uma vez sobre elas).







Nota 
- No blogue já aludido e em que coloquei vários complementos encontram-se duas intervenções do Dr. Paulo de Cantos que tiveram lugar por altura da abertura do ano lectivo de 1934.


7 - O escritor Luís Amaro de Oliveira

Do Prof. Luís Amaro, que conhecemos pessoalmente e com quem convivemos ficou-nos a imagem dum verdadeiro colega, generoso, de postura bem-disposta, embora ele fosse mais velho quase 30 anos. A sua delicadeza era natural mas do mais elevado grau.

O Dr. Luís Amaro, como todos o identificavam, nasceu em Braga, na Quinta de S. Tecla, a 7 de Julho de 1920.

Concluiu a licenciatura em Filologia Românica na Universidade Clássica de Lisboa onde foi aluno de Vitorino Nemésio, Delfim Santos e Jacinto do Prado Coelho. Foi amigo pessoal de Sebastião da Gama.


Capa dum livro de homenagem ao Dr. Luís Amarao.


A sua actividade lectiva, desenvolveu-a em várias escolas, sendo a última delas (1965-1990) a Escola Secundária de Eça de Queirós, ex-Liceu Nacional da Póvoa de Varzim. 

Faleceu em 16 de Janeiro de 1991.

Para a história da literatura, deixou um trabalho de investigação biográfica original sobre Cesário Verde. Na área da didáctica, distinguiu-se por ter preparado edições escolares de várias obras literárias que gerações quase inteiras de estudantes portugueses manusearam.

O Dr. Luís Amaro integrou o conhecido Grupo do Régio, que se reunia num café da Póvoa de Varzim, o Diana-Bar. Nesse grupo figuraram personalidades como o próprio Régio, Manuel de Oliveira, Agustina Bessa-Luís, etc.

A Escola Secundária de Eça de Queirós homenageou o Dr. Luís Amaro de Oliveira com a publicação dum livro intitulado Reencontro com o Dr. Luís Amaro de Oliveira, o Professor, o Amigo e fê-lo patrono da sua biblioteca.

O nome deste professor figura no Dicionário dos Educadores Portugueses e na Infopédia.

Para o livro com que a Escola Secundária de Eça de Queirós o homenageou, escrevemos então este pequeno texto:

O que mais admirei no Dr. Luís Amaro foi a sua delicadeza, em especial para com os colegas mais jovens, como era o meu caso. Não havia nisso fingimento; era uma atenção natural, que mais acentuava em nós o respeito que lhe dedicávamos. Consultei-o muitas vezes sobre temas do nosso ensino comum.

Mas sentia-se que uma mágoa funda lhe turbava o feitio prazenteiro, dado a convívio.

Não é muito o que sabemos sobre o Dr. Luís Amaro de Oliveira. Mas com ele, ao longo de uma boa dezena de anos, na Escola donde saiu para a reforma e por isso não o esqueceremos facilmente.

O trabalho que mais lhe honrou o nome foi com certeza o que realizou sobre Cesário Verde. Este original poeta oitocentista, apesar do interesse que por ele teve Fernando Pessoa, caminhava, ao que parece, para um apagamento imerecido, quando um trabalho do Dr. Luís Amaro, a ele dedicado, deu contributo importante para o trazer à tona do interesse da crítica. Os seus estudos sobre este poeta vêm citados no Dicionário de Literatura que o Prof. Jacinto do Prado Coelho dirigiu e também na História do Literatura, de António José Saraiva e Óscar Lopes.

Jacinto do Prado Coelho atribui algures também ao Dr. Luís Amaro o mérito de ter sido o primeiro a valorizar aspectos da Mariana do Amor de Perdição. Aliás, esse ilustre professor teve noutras ocasiões palavras de muito apreço para o Dr. Luís Amaro.

Em colaboração com Feliciano Ramos, publicou o Dr. Luís Amaro, nos anos sessenta, ao menos duas volumosas antologias literárias, das primeiras com certeza que a juventude teve ao dispor. Mas os seus trabalhos com maior divulgação escolar terão sido os que dedicou às Viagens no Minha Terra, ao Frei Luís de Sousa, ao Amor de Perdição, aos Maias, à obra de Cesário, e que tornaram o seu nome familiar a várias gerações de estudantes portugueses.

Embora este sumário da sua obra possa ser injusto por breve e incompleto, já dele se pode concluir alguma coisa. Por exemplo: ele esteve, desde muito cedo e quase em exclusivo, ao serviço da juventude escolar; o seu nome projectou-se por todo o espaço nacional; outros terão deixado livros, mas ele não os deixou menos; não se serviu do Ensino Secundário como trampolim para outros voos (tendo mesmo recusado um convite do Dr. António Cruz para ir ensinar para a Faculdade de Letras da U.P.).

A acabar, permitimo-nos sugerir a conveniência duma palestra por pessoa idónea desse conhecimento de toda a dimensão do seu legado intelectual. Seria esta a mais digna, a mais justa e mais prestimosa homenagem que os seus admiradores lhe poderiam prestar.


8 - O polifacetado Dr. Énio Ramalho

 O Prof. Énio da Conceição Ramalho nasceu em 1916. Foi um homem de múltiplos ofícios: professor, músico, pintor, etc. Publicou vários livros, mas sobretudo uma Gramática de Língua Inglesa que teve numerosas edições.

Ensinou no Liceu, primeiro, de 1957 a 1962, e depois, de 1971 a 1985, num total de 19 anos, tendo-se aposentado por limite de idade em 1985. Em 1975-76, foi "Encarregado da Direcção" do Liceu, juntamente com o Prof. Orlando Taipa.

A informação biobibliográfica que se segue é da autoria de Maria Isabel Correia Martins e foi recolhida do livro Reencontro com o Dr. Luís Amaro de Oliveira, o Professor, o Amigo, ed. da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 2001, páginas 84-85.

Fez a escola primária e o liceu em Macau, terra da sua naturalidade. Partiu para Coimbra em 1935, ano em que ingressou na Universidade, onde cursou Filologia Germânica, tendo concluído o curso em 1939 com distinção. Obteve o prémio do Instituto Britânico, como o melhor aluno de Inglês no final do curso. Defendeu tese sobre o tema "Aldous Huxley - o Intelectual Perante os Homens e a Vida", trabalho que a Faculdade de Letras da mesma Universidade publicou em separata da "Biblos", revista cultural organizada com colaboração dos professores da Faculdade. Frequentou o Estágio Pedagógico em Coimbra, no Liceu D. João III.

Ingressou no ensino no ano de 1942. Em 1947, a convite do Instituto Britânico, frequentou um curso de especialização destinado a professores da Língua Inglesa, no qual tomaram parte representantes de dez países da Europa e do Norte de África. O curso teve como sedes Liverpool, Londres e Oxford.

Leccionou durante anos em vários liceus do país, entre eles, o Liceu Nacional da Póvoa de Varzim, de 1957 a 1962; já então, fazia do teatro uma actividade paralela ao ensino, tendo levado à cena Guerras do Alecrim e Manjerona, de António José da Silva, com alunos do 5.º ano.

Em 1962, concorreu para o Liceu de Macau, onde foi nomeado Reitor e, no ano seguinte, Chefe dos Serviços de Educação, regressando, de licença à Metrópole em 1967. Desligou-se do quadro ultramarino para retomar o exercício no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa. No ano de 1972, concorreu a um lugar no Liceu da Póvoa de Varzim, onde leccionou até 1985, ano em que se aposentou.

Durante a sua actividade docente publicou algumas obras que a seguir se indicam:

Aldous Huxley - o Intelectual Perante os Homens e a Vida (tese de licenciatura), 1941;

Gramática da Língua Inglesa (para o ensino secundário), Porto Editora, 1958;

Guia de Conversação Inglesa, Porto Editora, 1959;

Dicionário Essencial Inglês-Português, edição do autor, 1961;

Coexistência Cultural (subvencionada pelos Serviços de Turismo de Macau), 1964;

A Princesinha na China (história para crianças e adolescentes), edição do autor, 1981;

Dicionário Estrutural Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, Lello & Irmão, 1985;

O Menino das Estrelas - Entre os Doutores (1998).

 

Obras Traduzidas:

A Psicologia - Estudo do Comportamento, de William Macdougal, edição França Amado, 1938, Coimbra;

Método e Teoria na Psicologia Experimental, de Charles Osgood, edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1972;

Os Dois Parentes Nobres, de William Shakespeare e John Fletcher, Lello & Irmão, 1974;

Sonetos Completos, de William Shakespeare, Lello & Irmão, 1998.

 

Ultimamente tem-se dedicado à música, o que, aliás, já fazia desde muito novo, tendo iniciado os seus estudos de solfejo e de órgão sob a orientação do Rev. Pe. Mateus das Neves, director da "Schola Cantorum" da Igreja de S. Lourenço, de Macau. Posteriormente, estudou Harmonia e Composição. É autor de composições para solo e coro e também para peças instrumentais, especialmente violino e piano. Participou no 1.º Festival da Canção Poveira em 1962, tendo obtido o 1.º prémio com a canção "Saudades do Mar" com que abrem e fecham as emissões diárias radiofónicas da época balnear, na Av. dos Banhos, posteriormente gravada em disco. Outras composições suas foram gravadas em disco e cassete, como por exemplo, "Santa Maria dos Mares", divulgada pelo cantor Luís Piçarra, "Na Lapa os Sinos Tocam", em cassete, interpretada pelo Coro da Lapa. Participou, ainda com uma composição, numa festividade realizada na Escola Secundária Rocha Peixoto intitulada "S. Pedro nas Escolas".

No que se refere à pintura, participou numa exposição colectiva local, no salão do Casino da Póvoa e fez a sua primeira exposição individual no Salão do Turismo da Póvoa, em 1991. Em 1995, participou na exposição comemorativa dos 150 anos do nascimento de Eça de Queirós, realizada na Filantrópica, com o seu quadro "O Mandarim". É autor, entre outras obras, de estampas com Trajos Poveiros, recentemente adquiridas pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, reproduzidas, há pouco, em postais. Em 1997, participou numa exposição de arte realizada no salão dos Bombeiros Voluntários de Vila de Conde, com uma escultura denominada "Cristo das Catacumbas".